Estamos há mais de um ano vivendo num mundo que se curvou ante a pandemia da Covid-19. Um ano que nossas bases, valores e propósitos foram colocados à prova. Ao artista, não poderia ser diferente. Os questionamentos, após este um ano de modo ?sobrevivência?, chegaram impondo não somente novas maneiras de se entender o mundo e as relações, mas, também, trazendo a necessidade por novas lentes com relação ao ofício do artista. Charles Chaplin e Marcel Marceau foram ícones importantes na arte e que tiveram suas vidas marcadas não somente por Guerras, mas também, pela Gripe Espanhola.
Com eles, emergiu um modo especial de pensar a arte e a livre expressão. Tanto Chaplin quanto Marceau resgataram a poesia do cotidiano devastado pela Guerra e as incertezas e dores que a acompanham. Foi na simplicidade do silêncio que construíram um mundo inimaginável de riso, poesia e leveza!
Mas e hoje? Será que a arte ainda nos serve para alguma coisa? Será que é necessária neste caos de informações, isolamento, distanciamento, reinvenções diárias de um novo mundo que desmanchou as nossas referências e agora nos exige uma nova postura? E a Mímica Total? Será que ela pode ajudar nas reconfigurações desse mundo pandêmico?
Movido por todos estes questionamentos, resolvi me colocar à prova. Resolvi colocar o método que surgiu e norteou as minhas pesquisas dos últimos 30 anos em xeque! Meu Mestre, Desmond Jones, não me ensinou como lidar diretamente com a realidade que vivenciamos hoje. Como sair do modo de sobrevivência e entrar novamente no modo de criação?
O artista deve se revisitar de tempos em tempos. Resgatar suas bases, os primeiros degraus que subiu no início de sua carreira. É lá que encontramos as sementes que nos foram norteadoras e nos inspiraram a criar ? seja nos palcos, seja na vida cotidiana.
A minha Jornada de redescoberta e ressignificações recomeça agora, 30 anos depois. Acredito ser importante compartilhar, documentar e disseminar estas sementes, para que a aridez que atravessamos agora encontre na arte um acolhimento saudável e possa servir de instrumentos não somente para o artista que exerce seu ofício nos palcos, mas também, para todos nós, seres humanos, que precisamos aprender a criar novas realidades no nosso dia-a-dia, fora dos palcos, tendo nosso corpo como fonte inesgotável de criação.
Os Cinco Pilares para Resgatar a Consciência de Si
1. SILÊNCIO
Sim! O silêncio é sempre um dos temas recorrentes em minhas pesquisas. Mas hoje, falar sobre o silêncio é desafiar não somente o barulho externo, mas também, todos os ruídos internos que nos povoam. E, acredito, a maior contribuição que pude obter neste momento de resgate de mim mesmo, artista e ser humano, foi compreender que não é somente ?permanecer em silêncio?, mas sim, exercitar a ESCUTA deste SILÊNCIO.
A matéria do meu trabalho, do meu ofício, sempre foi a vida em movimento. Mas como trabalhar quando tudo parou? O corpo dilatado do Mímico se contraiu, trancado em isolamento. Como dizia Spinoza, não existe nada mais triste do que estar afastado do que se pode, afastado da sua potência de existir. Acredito que não somente o corpo do mímico sofra com esta suspensão. O corpo de todos sofrem, isolados em maior ou menor grau, de suas potências.
Com isto, nossos pensamentos ficam atribulados. Somos tomados por incertezas. Existe um desgaste que vai tomando conta, contribuindo para que a qualidade de nossos pensamentos se torne negativa, densa, pesada...
Somente no silêncio é que conseguimos ouvir nossos monólogos interiores. Muitas vezes procuramos no externo, depositamos no outro, a escuta do nosso silêncio: o que estamos pensando?
Não! Ao me colocar diariamente em silêncio consciente, me tornando observador das minhas sensações e pensamentos, tomando cuidado para não me focar em nenhum deles, eu consigo perceber a minha paisagem interna, do meu corpo! É na escuta do silêncio que consigo conectar mente e corpo. E, fazemos isto, através do segundo pilar: a respiração!
2. A RESPIRAÇÃO
É através da respiração que percebemos que estamos vivos, que temos um corpo e, consequentemente, conseguimos nos conectar com nossas sensações e sentimentos. Nas artes marciais, por exemplo, a respiração é o CHI, que também é a vida, a nossa energia vital.
E de todas as nossas funções vitais, a Respiração é a única que conseguimos controlar. É o nosso termômetro das emoções. Poder acessá-la através do nosso silêncio, nos dá o poder de percepção de como está o nosso corpo, acessar os sentimentos e as sensações que estamos vivenciando e, então, trabalha-las conscientemente para que atinjam um patamar saudável.
Para mim, por exemplo, após passar um dia exercitando o meu silêncio consciente, tive um pesadelo terrível que afetou diretamente a minha respiração ? que se tornou curta e superior (no peito). Trabalhar a qualidade da respiração, traze-la para o abdômen (como a respiração dos bebês) e torna-la mais longa, desencadeou outros sentimentos e sensações. É a partir da respiração consciente que ativamos nossa energia e acessamos a nossa habilidade para reverter emoções negativas ? um presente para os dias de hoje!
3. FICAR EM PÉ
Após trabalhar o reconhecimento da mente e os cenários de sensações e sentimentos que a povoam através do silêncio e da respiração, é chegado o momento de resgatar o nosso corpo! E a primeira coisa que trabalhamos na Mímica é a postura, o estar em pé!
?Ficar em pé é um ato de resistência? já dizia o Mestre Etienne Decroux! Resistência contra a gravidade que nos puxa constantemente para baixo. Portanto, a nossa postura já configura uma atitude. Mais do que nunca, resgatar estas bases da Mímica Total, colaboram para que o meu corpo se alinhe e se posicione de maneira consciente e potente frente ao meu dia-a-dia, enfrentando o que deve ser enfrentado.
Acionar os dois vetores: céu e terra ao alongar minha coluna, além de ativar o centro da presença (a região do CHI, contraindo o baixo abdômen) ativa a nossa energia! Faço um convite a você: observe como anda sua postura logo pela manhã e como ela encerra o dia. O ambiente que vivemos incide diretamente na nossa postura, que incide diretamente nas nossas sensações corporais, que afetam nossas emoções e, consequentemente, influenciam a qualidade dos nossos pensamentos!
Que bagunça, hein! Mas o contrário também tem seus efeitos! Ao alinharmos conscientemente nossa postura, desencadeamos novas sensações corporais, que incidem sobre nossas emoções e pensamentos. Ufa! Então corpo alinhado e postura consciente me leva, diretamente, ao quarto pilar: o andar.
4. O ANDAR
Como se deslocar a partir do silêncio, da respiração e do alinhamento corporal? Tarefa relativamente simples, não é? Não...
O caminhar dentro de um ambiente hostil faz com que nosso corpo sofra este impacto e comece a se fechar. A hostilidade aqui, subentendida não somente como um ambiente de brigas ou violência, mas também, o ambiente marcado por privações, por ansiedade e stress ? cenário tão comum nos dias de hoje.
A tendência do nosso corpo é absorver o impacto destas energias e, instintivamente, se proteger. Passamos a caminhar, por exemplo, olhando para baixo, ombros arqueados, sentindo o peso da gravidade que nos puxa ? corpo e mente ? para o chão. E então, quando percebemos, nossos pensamentos estão mais densos e passamos a corporificar o medo, as angústias e as preocupações.
A Mímica neste momento, se torna uma ferramenta valiosa para nos instruir para a vida cotidiana: o caminhar com os vetores acionados, com o centro da presença ativado, sem esquecer do nosso olhar ? sempre alinhado à frente, na linha do horizonte.
Entramos agora no quinto e último pilar, o da filosofia da Mímica: ?Peso, logo existo?!
5. O PESO
Tudo tem um peso. Na Mímica, este ensinamento é um elemento norteador na hora de criar ilusões, cenários com o próprio corpo, buscar a expressividade livre e criativa. Mas, para além dos palcos e especialmente nos tempos em que vivemos, estarmos atentos ao peso de tudo ao nosso redor e, principalmente, como nos relacionamos com ele, vale ouro!
Explico: Jacques Lecoq, Mestre da Mímica Contemporânea, dizia que em toda relação de vida ? um encontro, uma despedida, um pensamento ? o peso está envolvido. Podemos ter um encontro pesado, uma despedida leve... No teatro, quando trabalho com meus alunos, costumo provocar experimentações com mudanças de peso: explorar partituras corporais com pesos diferentes ou, então, dizer o mesmo texto com texturas, com pesos diferentes.
Transpor este ensinamento para o meu dia a dia, me traz a seguinte reflexão ? que estendo à você também: ?Como está a minha relação com o peso no dia-a-dia??
Viver neste momento de pandemia, por exemplo, nos desencadeou o modo ?sobrevivência?, tornando-o mais ativo que o modo de criação, que a arte nos proporciona. E, neste modo de sobreviver, acabamos por colocar mais peso em nossas relações e situações cotidianas.
O antídoto? A vacina? ? Certamente a ressignificação destes cinco pilares da Mímica, trazendo-os para as minhas relações do dia-a-dia. Escutar o meu silêncio para conseguir acessar meu universo interno. Buscar o equilíbrio e a leveza a partir da respiração consciente, que irá afetar minha postura e meu caminhar. E então o peso! Qual a minha responsabilidade direta sobre as minhas ações e atitudes no meu cotidiano com relação ao peso que recebo e que devolvo ao mundo?
E então seguimos! No aqui e agora. Exercitando a consciência, um dia de cada vez, com a arte nos resgatando e nos instrumentalizando cada vez mais para sair do modo ?sobrevivência? e atingir o modo potente da criação. Vamos juntos.