Inicio esse artigo propondo uma reflexão, a partir de uma pergunta que costumam me fazer: ?Por que você escolheu a Mímica na sua vida, Luis??.
Hoje, olhando para esses quase trinta anos de caminhada artística, em que mergulhei em uma das maiores jornadas da minha vida, posso afirmar que a Mímica foi a maior fonte de transformação na minha vida artística e pessoal!
Mas calma! Vamos retornar um pouco na linha do tempo e refazer os meus passos, para que eu possa compartilhar com você, os ensinamentos, os dez presentes ? ou os dez mandamentos ? que essa Arte me ensinou.
É importante iniciar, dizendo que a Mímica não é somente um gênero artístico, ela é também uma filosofia de vida, um ?ato de corporificação?. Explico: cada vez que transformamos um pensamento, um sentimento ou uma sensação em um gesto, ou até mesmo quando damos ?voz? ao nosso corpo, estamos fazendo mímica! Existe a mímica corporal, que é aquela que afeta os nossos movimentos corporais e, também, a mímica vocal. Sim! A mímica vocal é aquela que surge quando você transforma seus pensamentos, suas ideias e suas emoções em voz! Poucos sabem que a Mímica também trabalha com a expressividade vocal. A arte silenciosa, orientada pela comunicação não verbal, é um gênero da Mímica chamada de Pantomima.
Como eu aprendi tudo isso? Vamos lá para aquela linha do tempo que mencionei. Eu sempre fui uma criança muito ativa, sempre gostei de brincar com o meu corpo, era muito ativo mesmo. Mas, na minha educação, como na maior parte da minha geração aqui no Brasil, fui orientado para o ?modo da sobrevivência?! Neste modo, muitas vezes deixamos os nossos sonhos de lado ao escolher uma profissão. E, então, trabalhamos muito, descansamos nos finais de semana e planejamos uma bela aposentadoria, para, então, sermos felizes. Tudo que se relaciona com os com os desejos pulsantes, fica separado deste modo de sobrevivência. Era assim com a maioria das pessoas da minha geração, não foi diferente comigo.
Claro que tudo que dizia respeito ao lúdico, ao criativo e ao desejo vital, passou a ficar cada vez mais distante da minha rotina e do que poderia escolher para a minha vida. Eu até cursei teatro durante a infância, cheguei a fazer curso técnico inclusive, mas este universo artístico começou a se distanciar muito do tipo de educação que recebi. Então fui pro Direito! Depois de dois anos cursando a faculdade, totalmente distanciado do meu mundo interno criativo resolvi cometer uma loucura, dar um salto! Foi o primeiro momento na minha vida em que eu enfrentei tão intensamente os meus medos e resolvi assumir os meus sonhos, mergulhar no teatro e em 1992 embarquei para a Inglaterra!
E é aqui que a minha jornada começa a ficar interessante. E, talvez, você possa se identificar com muito do que tenho para compartilhar!
Quando cheguei em Londres, sem dinheiro e sem lugar para ficar, meu intuito era o de passar somente alguns meses por lá, mas acabei ficando por mais de cinco anos! E o que trazia comigo de bagagem era justamente este MODO DE SOBREVIVÊNCIA. Esta maneira de ?sobrevida?, vamos assim dizer, não era algo que dizia somente à educação escolar da minha infância, mas percebi que levava, também, uma ?sobrevida? na arte, com a formação artística que havia recebido!
Eu sei que pode parecer clichê, mas dizem que quando nos colocamos em movimento, começamos a atrair horizontes diferentes. Sim, é verdade! Minha aventura à Londres me levou diretamente até aquele que seria o grande Mestre da minha vida: Desmond Jones! Ele foi o responsável por me apresentar a essa arte potente e transformadora! E, devo confessar, no início também tinha preconceitos com a Mímica, por ter uma visão muito restrita e caricata sobre essa arte. Considerava Mímica, somente aquele performer silencioso, com o rosto pintado de branco, que não falava e que fazia números de sombras ou de estátuas vivas, técnicas que hoje em dia também amo! Mas achava que era uma arte menor. Desmond Jones me apresentou a amplitude dessa Arte, me abriu a cabeça e, com isso, ocorreu uma profunda transformação na minha vida!
Uma das coisas que mais sentia dificuldade em entender, com a educação artística recebida no Brasil, era a fragilidade da posição do ator/atriz no contexto da criação. Havia uma clara hierarquia teatral, com a figura do produtor no topo, seguido pelo autor, diretor, técnicos teatrais e, no final, numa posição desprivilegiada, vinha o ator. O foco era entender o que o autor queria, as vontades do diretor, mas era sempre ignorado, quase que proibido, saber qual era o meu desejo criativo na arte, o que me tirava o fôlego, o sono! Nunca me orientaram quanto a isto, a pensar sobre o assunto ou buscar por isto.
Desmond Jones foi aquele que me ensinou que quando entro numa sala de ensaio, num espaço vazio, ele não é vazio. Existe você ali! Existe desejo, pulsão de vida, suas emoções! Tudo que, geralmente, não somos ensinados a levar em consideração em primeiro plano, mas que é o primordial quando se é artista! Essa jornada de transformação passou por 10 ensinamentos, que podem ser chamados: os dez mandamentos da Mímica. Vamos lá?
OS DEZ MANDAMENTOS DA MÍMICA
1. HABITAR O PALCO NU: O ATOR NO CENTRO DA CRIAÇÃO.
Quando você sobe ao palco, a primeira coisa realmente necessária é ter algo a dizer. O que você tem a dizer? Sua viagem começa ao se provocar para ir até este espaço, o palco, e ocupa-lo com o seu desejo expressivo. ?Ei, mas espera um pouco! Nunca me disseram isso! Sempre me falaram que eu deveria ter um texto, um produtor, um diretor... Então quer dizer que sou eu quem tenho de preencher tudo isso??. Sim! Somos nós! E isto é realmente revolucionário: ao adentrar o palco nu temos que o fazer com nossos corpos pulsantes de desejo e bancar: ?o que eu tenho para dizer que vai me fazer entrar por inteiro??.
2. A ESCUTA DO SILÊNCIO
Ao entrar em contato com o palco vazio, percebi o silêncio que o envolvia. E então eu pude escutar os meus pensamentos, a minha pulsação, as minhas vozes interiores. Já reparou que no dia-a-dia estamos tão perturbados com a poluição sonora, do ambiente social e dos com nossos vícios de pensamentos, que nos habituamos a não nos ouvir? E, ao não ouvir, acabamos por procurar outras pessoas para que nos digam o que devemos fazer ou pensar... Loucura, eu sei! Mas quando ouvimos o silêncio e nos conectamos, começamos a nos perceber, a perceber a nossa respiração!
Etienne Decroux, pai da mímica moderna, já dizia que o primeiro texto do ator é a sua respiração. O que diferencia um movimento mecânico de um movimento orgânico é a respiração! Quando respiramos, transformamos aquele movimento em vida! E é esta respiração que passa a ser um termômetro das emoções. É vital que saibamos lidar com ela. No silêncio aprendi que a resposta aos nossos desejos está em nós mesmos!
3. O CORPO COMO O PRÓPRIO PENSAMENTO
É primordial o entendimento que o corpo não é um simples instrumento do nosso pensamento. O corpo é o próprio pensamento! Você não tem um corpo, você é o seu corpo! Aprender as gramáticas corporais, dedicar-se às artes do corpo, é a maneira mais efetiva para a compreensão de que o seu corpo é o seu corpo-teatro! Mesmo que você não tenha um teatro-edifício para ser o teto que abriga a sua obra, existe o seu corpo que a abriga para você! Com isso, você passa a transformar o seu pensamento em ação!
4. O ESPAÇO COMO CENÁRIO: UM UNIVERSO DE IMPOSSIBILIDADES
A mímica te fornece elementos e técnicas que provêm um campo fértil para que possa criar qualquer coisa no espaço: corporificar objetos, símbolos e ambientes a partir da sua presença e do seu corpo! O invisível se torna visível e o impossível se torna possível!
5. AS EMOÇÕES COMO ROTEIRO
Neste ponto da jornada das descobertas, olhar para si e para todas as suas potencialidades faz com que a organização dos pensamentos e sentimentos seja a maneira de criação de roteiros: tornamo-nos uma fonte infinita de criação!
6. LIBERDADE
Tudo que foi dito anteriormente nos leva a uma questão imprescindível que é o que preenche o universo do mímico: liberdade! As possibilidades se tornam infinitas na criação! Claro que posso me aproximar de textos de autores que eu admiro e me representam, ou ter vontade de trabalhar com determinado encenador ou diretor. Mas quando a mímica revoluciona a nossa vida artística, o fazemos porque assim escolhemos! Porque meu universo criativo está preenchido totalmente pela minha potência ? como aquela noção de ?super homem? do Nietzsche que alude ao ser humano que afirma sua potência de vida ao máximo ? o que nos leva ao sétimo mandamento:
7. AUTONOMIA
Desmond Jones dizia ?Quando temos liberdade? Quando temos escolhas!?. E a mímica proporciona esse leque de opções, de escolhas! Porque ela nos dá autonomia! Eu posso me colocar na linha de frente e criar o que o meu desejo criativo pede! Este é o papel do artista: criar novas realidades!
8. DRAMATURGIA DO DESEJO
Qual é o seu desejo expressivo? O que te faz acordar no meio da noite? O que te cutuca as vísceras e te impulsiona para a criação? Esse é o ponto da transformação que a mímica te brinda! Aí está o centro da sua obra artística. Então, a partir dessa descoberta, poderá se relacionar, inteiramente, com um texto, uma música, um objeto cênico que a sua obra necessite.
9. PODER EM CRIAR AS SUAS PRÓPRIAS OPORTUNIDADES
Não tem mais jeito! Você já percorreu uma longa jornada! Agora a transformação é inevitável porque você não somente compreendeu, mas sentiu com o seu corpo, que você detém todo o poder dentro de si: LIBERDADE, TÉCNICA E AUTONOMIA. Você não precisa esperar por um texto, uma produção, alguém batendo à sua porta te convidando para trabalhar. Você oferece o seu trabalho, a sua arte, a sua expressão artística!
10. A MÍMICA PARA A VIDA: CRIANDO NOVAS REALIDADES
Como fazer essa contra efetuação? Como é levar estes princípios de potência máxima criativa para a vida? Enfrentar seus medos? Criar novas realidades? Afetar o mundo e fazer a diferença a partir dessa micro revolução pessoal que a mímica te trouxe?
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Fica aqui a minha reflexão e meu convite, neste momento de pandemia que atravessamos: você consegue enxergar as infinitas possibilidades que a mímica pode despertar na sua vida artística? E na sua vida pessoal? A representação e as máscaras sociais são utilizadas em nosso cotidiano. A arte não cria ficções. A arte nos revela nossa própria realidade interna e nos provoca e nos instrumentaliza a ir além!